LINDA
ESPERANÇA
Peguei a gaiola em Manaus
às duas horas da tarde e me estendi na rede lá no final do barco. Estava lotada,
uma fileira interminável de redes de todas as cores bem próximas umas das
outras. Um barulho infernal e as pessoas falando todas ao mesmo tempo, dava a
impressão de um zumbido perturbador. Gente de todos os tipos e idades,
conversando sentados nos bancos, fumando cigarros fedorentos, deitados nas
redes, arrastando seus pertences pelo convés.
Ainda não tinha aceitado a
ideia de que a minha Marina tivesse sido assassinada brutalmente naquela região
hostil e desumana do garimpo. Estava me sentindo infeliz e doente, sem nenhuma
perspectiva de vida, sem destino. Por isso eu entrei naquele barco que chamam
de gaiola, são navios típicos da Amazônia, misto de passageiros e carga, sobem
e descem os rios sempre lotados de homens, mulheres, animais e todo tipo coisas
tanto para uso próprio como para alimentar o comércio da região, uma festa de
frutas bonitas e gostosas: piquiá, bacuri, tucumã, guaraná, buriti, açaí,
pupunha, taperebá, caçari, bacaba, etc.
Eu não estava me sentindo
bem, com frio e o corpo muito quente, já tinha me arrependido de ter pegado
aquele barco em lugar de voltar para a minha terra, no sul. A embarcação parava
em todos os portos do rio e em cada parada saiam uns e entravam outros tantos.
Sem ter o que fazer, quando não estava dormindo, ficava observando os
pescadores na beira do rio toda colorida de vermelho e roxo pela frutinha
chamada camu-camu que eles usam para pescar o tambaqui.
O espaço do barco já
estava quase todo tomado por sacos de farinha, milho, arroz, feijão e os mais
diversos tipos de mercadorias, e engradados de galinhas cacarejantes, sem
contar as caixas de isopor cheias de peixe, de algumas até escorriam água com
cheiro desagradável pelo chão. Para sair das redes as pessoas às vezes tinham
que pisar sobre as caixas e sacos.
A gaiola seguia o rumo deslizando
no banzeiro das águas rio a fora, com o movimento do barco fazendo com que as
redes todas juntas uma das outras ficassem se balançando como se fosse um balé.
No meio da viagem o motor do barco parou de funcionar e tivemos que esperar
cerca três horas na beira do rio infestado de carapanãs até que fosse
consertado para podermos prosseguir a viagem.
Pior foi quando eu
precisei ir ao banheiro, a catinga e a sujeira realçadas pelo calor eram
insuportáveis e aquelas pessoas todas nem se incomodavam. Acho que já estão
acostumadas, virou rotina na vida delas.
Quando chegamos num lugar
chamado Trombetas, o barco fez uma parada mais demorada. Depois eu soube que
isso acontece normalmente porque ali foi instalado o maior brega da região,
Vila Paraíso, é assim que é chamado o Bordel. Eu não tive coragem de sair da
minha rede, não tinha forças, estava suando muito e com uma moleza terrível,
acho que estava doente, com febre muito alta. Eu estava tendo pesadelos e tive
a sensação de que era carregado. Dormi por muito tempo, apesar de acordar várias
vezes. Acho que estava delirando.
Numa dessas ocasiões, eu
estava deitado numa cama estreita num pequeno quarto e tinha uma mulher
passando um líquido cremoso pelo meu corpo todo. Não sei bem o que ela estava
fazendo ou se realmente estava acontecendo, tinha a sensação de um líquido bem
frio sendo esfregado desde o pescoço até os pés, ela ficava mais tempo passando
a mão nas minhas nádegas, mas logo eu voltei a dormir.
Quando acordei de novo,
deveria estar anoitecendo, tinha alguém passando um pano úmido na minha testa e
na minha boca. Ouvi um barulho de porta se abrindo e alguém perguntou:
“Ele ainda está dormindo?”
“A febre dele está
baixando com o unguento da mulher das plantas. Acho que ele está melhorando, já
não está muito agitado. Fiz ele engolir o caldo de galinha” - a mulher que
estava próximo a mim respondeu, revelando uma voz jovem com o volume
controlado.
Eu dormi novamente e pela
primeira vez sonhei com a Marina. O sonho parecia muito real, sentia ela
beijando o meu corpo como gostava de fazer. Então eu acordei e vi que tinha uma
mulher abraçada comigo, com as pernas sobre o meu corpo, os seios grandes sobre
o meu peito e com o sexo úmido encostado em mim. Ela percebeu que eu acordei e
saiu da cama, perguntou se eu estava me sentindo bem. “Parecia que você estava tendo um pesadelo” –
ela disse.
Eu me lembro que balancei
a cabeça afirmativamente, mas voltei a dormir. Sonhei novamente com a Marina,
estávamos fazendo amor na beira do rio. Acordei novamente e desta vez tinha
outra pessoa passando um pano com água morna em mim. Fingi que estava dormindo
porque a sensação era muito gostosa e não queria que ela parasse. Depois de
alguns momentos, ela deslizou as duas mãos pelo meu corpo nu, desde a cabeça
até os pés, em seguida me cobriu e saiu.
Eu já estava me sentindo
bem melhor, queria me levantar para saber que lugar era aquele. Percebi que estava
amanhecendo pela penumbra no ambiente e pensei se os sonhos muito reais que
tive foram provocados por alguém como aquela mulher que havia saído do quarto.
Quem era ela ou elas e porque todas as vezes que eu acordava depois de um sonho
tinha uma mulher me acariciando? Queria
descobrir as respostas.
Levantei da cama, enrolei
o lençol na cintura e fui olhar pela janelinha. Descobri que eu ainda estava no
barco, parado num porto do rio, era de manhã, deveria ser cerca de oito horas.
Logo em seguida entrou uma mulher e disse:
- Bom dia! Parece melhorou, você estava muito
doente. Pensei até que iria morrer de malária. Nós lhe trouxemos pro meu
camarote porque você estava tão doente e tão fraco que a rede ficava tremendo.
Nós cuidamos de você noite e dia. Ficamos com muita pena de ver o estado que
você estava, ainda mais sozinho. Eu sei que o seu nome é Anselmo e é do sul. Pelo
visto veio do garimpo, mas as tuas coisas estão todas ali, do jeito que encontramos,
nada foi tirado, pode ficar sossegado.
Era uma mulher meio gorda,
deveria ter perto de quarenta anos, os cabelos pintados de louro e os olhos
castanhos.
- O meu nome é Rosana. Tenho uma casa de
mulheres, você sabe, pra agradar aos homens. Estou justamente levando mais duas
que estão aqui comigo. Você tem mulher? Você delirou muito e falava o nome
Marina o tempo todo, parece que sonhava com ela.
- Ela morreu, era minha namo... trabalhava num
brega lá perto do garimpo. Eu ia tirá-la daquela vida, mas ela foi assassinada,
mataram pra roubar o dinheirinho dela.
- Coitadinha! – Disse ela. E você, está indo
pra onde?
- Não tenho destino certo, dona. Peguei o
barco porque estava meio desorientado, não queria pensar na vida, estou muito
abalado.
Voltei
a me deitar na cama porque estava me sentindo meio tonto.
- Se você quiser pode vir comigo, pelo menos
por uns tempos até se recuperar. É lá em Santarém.
Eu olhei para ela e não disse nada.
- Eu vou ver se consigo um caldo, você precisa
se alimentar.
Eu agradeci e falei:
-
Vou ter que dar um jeito de pagar tudo isso que a senhora fez por mim.
-
Não tem nada que me pagar, não ia deixar você morrer aqui no barco pra ser
jogado no rio e virar comida de peixe. Se você for comigo lá pra Santarém eu
vou ficar bem satisfeita. Vou pedir à Carol pra trazer alguma coisa pra você
comer, ela ficava aqui contigo também, quando não era eu era ela. É uma boa
moça. Descanse e não se preocupe.
Não demorou dez minutos
ela entrou uma garota trazendo uma tigela fumegando numa bandeja.
- Olá, moço! Já ficou bom? Não vou
mais ter que ficar aqui cuidando de você?
-
Teu nome é Carol? Foi você que cuidou de mim? – Estava torcendo que fosse. Ela
me deixou atordoado, era linda. Deve ter sido ela que me fez sonhar com a
Marina. Comecei a pensar num pretexto para ficar com ela perto de mim por mais
tempo.
- Às vezes era eu e às vezes era a dona Rosana.
– Ela falou pousando a bandeja aos meus pés na cama e continuou: acho melhor
você se sentar pra poder comer, eu vou ajudar. Você não quer vestir a roupa?
Vai ficar assim pelado o tempo todo? Não se importe porque eu já vi tudo, até
te lavei com um pano úmido.
Pegou as minhas roupas na
mochila e ajudou a me vestir, depois disse para eu sentar e me deu a sopa.
- Assim eu vou querer
ficar doente de novo, não sabia que o anjo que cuidou de mim era tão bonito. – Eu
disse.
Ela
sorriu e perguntou:
- Você me acha mesmo bonita? Mais bonita que a
Marina? A dona Rosana me disse que era sua namorada e que ela morreu. Você
gostava muito dela?
- Muito, eu gostava demais dela. Eu ia até tirá-la
daquela vida, mas não deu tempo, foi lá no garimpo.
- Você sonhou uma vez com ela chegou a se
sujar, eu tive que te limpar, fiquei com inveja dela – Ela falou me encarando.
Uma lágrima escorreu do meu olho
esquerdo embora ambos estivessem marejados. Ela passou a ponta dos dedos no meu
rosto para secar a lágrima e disse:
- Não fique assim, não tem jeito mesmo. Você
não pode fazer ela voltar. Não tarda você encontra um novo amor.
- É, você tem razão, mas eu tenho uma tristeza
muito grande morando aqui no meu peito, chega a doer.
Ela ficou calada me
olhando e eu não pude evitar encará-la também, de repente estávamos nos
beijando, e descobri que ela era doce como a minha Marina.
- Eu estou gostando de você desde que você estava
aqui delirando com febre. Eu fiquei aqui o tempo todo com você. Só saía quando
a dona Rosana me mandava descansar e ela ficava no meu lugar.
Passei as mãos nos cabelos
dela, pretos como o breu da noite e muito lisos, iam até o meio da cintura,
acabamos por nos beijar de novo.
Quando nos afastamos ela
disse:
- Não sei se a dona Rosana vai me deixar ficar
aqui se você já melhorou. Eu vou ser uma de suas meninas, vou fazer a mesma
coisa que a sua Marina. Ela disse que a gente ganha um bom dinheiro e se
diverte. Só assim eu saí daquela miséria que eu vivia lá em casa, o dinheiro que
meu pai ganha é pouco pra sustentar uma penca de filhos, a dona Rosana disse
pra minha mãe que eu ia trabalhar de empregada na casa dela.
- Então eu vou fingir que piorei de novo pra
ela deixar você ficar aqui comigo.
-
Não precisa, eu vou dizer pra ela que não é bom você ficar aqui sozinho, que a
febre pode voltar e que é melhor eu ficar aqui com você.
- Tá bom! Eu espero, mas não demore, eu estou
muito fraquinho. – Eu disse sorrindo.
Não demorou muito e ela voltou.
-
Pronto já estou aqui seu manhoso. A dona Rosana me deixou ficar fazendo
companhia pra você, mas falou que se você passar mal é pra eu ir correndo
chamar por ela. Mas disse que é só pra fazer companhia...
-
Então deita aqui bem pertinho de mim pra me esquentar, eu estou com muito frio.
Ela trancou a porta e se
deitou ao meu lado e o amor veio em ondas, como o banzeiro do rio e encontrei
uma nova razão para seguir o meu caminho.
-
Sabe minha linda cunhantã, estou gostando muito desse teu jeito, com muita
vontade de ter você sempre comigo, assim bem juntinho, esse seu corpo como as
curvas do rio, cheiroso como as flores que enfeitam as margens e a boca doce
como o abiu.
E ela me olhando nos
olhos, o muiraquitã pendente de um cordão espremido entre nossos peitos, me
disse o que eu queria ouvir.
-
Cunhantã, mas quase cunha. Também quero
muito te dar minha carícia a sempre. Ser sempre sua assim, desse jeito.
Nós saímos do barco em
Óbidos, não queria ter outra mulher nas mesmas circunstâncias que facilitaram a
morte da Marina. Deixamos um bilhete explicativo para a dona Rosana, junto do
qual depositei uma de minhas pedrinhas em pagamento pelo que fez por mim, tanto
pela cura da enfermidade como pela aproximação da minha doce Carol que me
devolveu a vontade de viver.
Caminhamos de mãos dadas
pelo cais em direção à cidade e nos viramos para olhar a embarcação que
proporcionou o nosso encontro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário