quarta-feira, 27 de julho de 2011

O OLHO ESQUERDO


O OLHO ESQUERDO

O defunto insistia em ficar com o olho esquerdo aberto, só o esquerdo.
“Justamente aquele olho que durante toda a vida, ficou meio aberto meio fechado, quando ele estava acordado, claro. Apesar de que nem dormindo ficava totalmente fechado.” – Dizia Carlota, a chorosa viúva, que não parava de piscar encarando, naquela hora, o olhar firme do persistente olho do Leôncio.
Ela achava que era defeito de nascença, sempre foi assim, como se estivesse meio dormindo meio acordado, por isso era conhecido no seu meio como mormaço.
Durante todo o velório, volta e meia Carlota ia lá junto ao corpo para espantar as moscas e as abelhas e aproveitava para puxar para baixo a pálpebra insistente, que ia, aos poucos, se encolhendo. Esse processo durava mais ou menos quinze minutos, até o olho ficar totalmente aberto, deixando à mostra a íris embaçada e o globo amarelecido pela falta de vida, como um observador silencioso do comportamento daquelas pessoas que foram até lá para se despedir e relembrar as suas peripécias. A impressão que dava era que ele estava querendo saber como estavam sentindo a sua partida.
O Doutor Bráulio, médico da família, que durante muito tempo cuidou da tosse insistente do Leôncio (deve ter cuidado da tosse mesmo, pois ela nunca abandonou o homem), embasado nos seus conhecimentos acadêmicos sobre o corpo humano,  enquanto tomava um cafezinho servido da garrafa térmica em copo de vidro, naquela altura, mais para morno do  que quente, contou ao cunhado do falecido, que tinha  tomado umas três daquela branquinha a pretexto de tirar o gosto de flor de cemitério da boca, que o movimento das pálpebras do Leôncio era no sentido contrário. Em vigília ele tinha que fazer força para o olho abrir, embora não soubesse se quando ele estava dormindo o olho fechava, porque nunca viu o falecido dormindo e, também, nunca perguntou à viúva. A estrutura cerebral que trabalha aquela região deve ter sofrido algum dano, por isso funcionava de forma inversa. Quando perdeu a vida, deixou de existir o comando e aquele olho esquerdo, ao contrário do outro, ficava aberto em lugar de fechar. Aliás, ele, depois de passadas as horas tristes da despedida, quando estivesse conversando com a viúva entre uma consulta e a despedida, a propósito de seus estudos, iria perguntar sobre o caso, que pelo comportamento do olho durante o velório, estava lhe aguçando mais a curiosidade.
Lá pelas tantas, depois de muita romaria em torno da caixa mortuária de segunda, forrada de tecido estampado em amarelo e roxo, exigência do Leôncio, reafirmando no seu leito de morte, segundo a viúva, para ela poupar o dinheirinho que ele vinha guardando na poupança, justamente para auxiliá-la na sua falta. “Nada de luxo com ele nessa hora. Caixão envernizado de madeira de primeira com crucifixo pregado na tampa era dinheiro jogado fora. Além do mais ele era adepto da preservação da natureza e não queria em hipótese alguma colaborar com esse crime” – dizia ele. Pediu, inclusive, que ela se assegurasse, mediante apresentação de certificado pela funerária, que o caixão fosse feito de madeira de reflorestamento, assim ele ia em paz com a consciência ecológica. Isso ela não fez, obviamente, porque além de comprar o mais barato, o que fatalmente já ia provocar cochichos ao pé do ouvido, principalmente das cunhadas, o dono da funerária poderia ser proprietário de uma madeireira clandestina e considerá-la suspeita de ativista.
Carlota tinha muito medo de se envolver com essas coisas por causa de vários casos que ela tinha visto no noticiário da televisão. “Só o Leôncio pra me deixar numa situação dessas nessa hora” - pensava ela. Agora queria viver em paz na sua nova condição de viúva.  
Terminado o tempo do velório, já que, apesar da persistência do olho esquerdo do Leôncio, o corpo não deu outro sinal de vida, tocou-se a sineta anunciando o enterro. Na hora de fechar a tampa do caixão, os parentes não conseguiam desprender a inconsolável viúva que, aos prantos, no último adeus, fora de si, dizia ao defunto: “Não olhes tanto para mim. Eu fiz quase tudo como me pediu. Você deve agora é, lá de cima, olhar, de outra maneira, por mim e pelos seus filhos.

terça-feira, 26 de julho de 2011

ETERNO AMOR


ETERNO AMOR
“Eu nunca tinha sentido nada igual antes. Uma sensação assim, quase inexplicável. A primeira vez que eu atingi o orgasmo, foi também a primeira vez que eu fiz amor com ele, também a minha primeira relação sexual.
Como é bom fazer amor com o homem que eu amo! Meu único homem. Aliás, acho que o único homem é meu. Eu não vejo outros. Eu sou dele, inteira. Sempre serei. O prazer é tão grande... Ele me trata com tanto carinho... Eu gostaria que os nossos momentos juntos, principalmente aqueles, nunca terminassem.
Esse negócio que ouço as mulheres falarem que a primeira vez dói muito e sangra, é tudo uma grande bobagem. Acho que elas inventam, ou, então, ele é o único homem que conhece e sabe usar o corpo, fazer amor com uma mulher e, por muita sorte, tinha que ser o meu.
Na minha primeira vez, a princípio, é lógico, pelo que me contavam, eu estava um pouco nervosa. Mas, quando me dei conta, a gente estava se acariciando de uma maneira deliciosa sem o empecilho das roupas e olhos curiosos. Foi como se estivesse sonhando... aquele corpo de homem inteirinho pra mim, nuzinho, pra fazer o que desejasse, isolados no nosso ninho de amor, sem preocupações e olhares indiscretos e maldosos. O que eu mais queria naquele momento, era me entregar a ele, inteira, por dentro e por fora, deixar de ser uma garotinha pra ser uma mulher, a mulher, fêmea do homem que eu amo. Ambos estávamos prontos e ansiosos pra tomar a posse, integral e definitiva, por inteiro, do que sabíamos nos pertencia. Assim, aconteceu como se fosse a coisa mais natural no mundo, como se eu já tivesse feito aquilo várias vezes, eu sabia tudo, instintivamente. O meu corpo foi preenchido justamente pela parte que lhe faltava. Eu me completei. Me tornei, naquele momento uma mulher, inteira, feliz.
Impressionante! Eu mesma me espantei. Eu já sabia tudo. Acho até que fui eu que tomei a iniciativa. Fiz do jeito que eu desejava, como eu sentia melhor. Até que veio aquela sensação louca, uma vontade de ter mais e mais. Descobri que a busca do orgasmo passa a ser intuitiva. Quando você goza percebe o que estava fazendo e fica com uma sensação de cansaço, mas muito, muito feliz. Agora eu entendo que nós não somos inteiros, precisamos encontrar a nossa outra parte pra nos completar. Eu o amo, adoro. Eu o quero sempre, sempre, e tenho certeza que os sentimentos dele são iguais aos meus. Nós nos completamos, não vivemos mais um sem o outro.”
Foi assim que a Estela me contou, quando me confidenciou sobre o relacionamento deles. Quando ela me falou que estava namorando, eu até pensei que era algum colega nosso. Fiquei muito surpresa quando ela me disse que era o Marcio, o professor de literatura - disse a amiga Renata.
Depois, ela me falou que estava muito preocupada. Eles não sabiam o que fazer porque ela ainda não era maior de idade e o pai dela tinha descoberto de alguma forma ou alguém que os viu juntos contou para ele. O pai não aceitou que ela namorasse um homem com a mesma idade dele. Acho que esse foi o maior problema, por isso ela a estava condenando.
Ela me disse que o Marcio também tinha uma filha da mesma idade dela e que também estava tendo problemas. Disse-me que ele chegou a lhe dizer que era melhor que terminassem tudo, porque ela ainda era muito jovem tinha a vida inteira pela frente. Chegou a perguntar várias vezes se ela tinha certeza dos seus sentimentos se era isso mesmo que ela queria. Embora ele a amasse muito, estava disposto a se afastar, se ela quisesse. Ela lhe disse que queria viver com ele, não importava o resto. Embora amasse e respeitasse os seus pais, ela o amava demais e eles tinham que entender que ele era um homem e ela uma mulher que se gostavam e queriam um ao outro. Queria ficar com ele mesmo que tivessem que fugir e até morreria se tivessem que se afastar.

É impressionante como a sociedade acha que pode e tenta interferir na vida das pessoas, nos sentimentos. Apesar de ele ter vivido mais do que ela, de ter estudado muito e ter uma filha da mesma idade dela, ele ainda era homem. Um homem muito especial para ela, que já era mulher, apesar de não ter vivido tanto quanto ele.
Ultimamente ela vivia triste, sem vontade de voltar para casa. Ficava mais feliz quando fazia hora na biblioteca a pretexto de estudar. Agora eu sei que ela ficava esperando o Marcio terminar as aulas.
Por causa disso tudo, eu, às vezes, fico pensando se o homem enquanto animal instintivo seleciona da mesma forma que o homem social a relação macho/fêmea, homem/mulher, na questão do sexo (refletindo filosoficamente). Eu só sei que por conta disso eu perdi a minha melhor amiga e que o pai dela deve estar muito triste e arrependido.
Quando ela não apareceu na escola dois dias seguidos sem dar notícia, eu pensei que tinham fugido, principalmente porque o Marcio também não foi dar aulas. Eu até fiquei feliz. Era a única pessoa que sabia do relacionamento deles, além do pai e da mãe, é claro. Pensei que ela estivesse bem longe, vivendo o seu amor, a vida que ela tanto queria. Jamais iria imaginar que ela levaria adiante, com tanta determinação, aquela história de para viver sem ele era melhor morrer.
Por isso foi um choque para mim, aquela notícia publicada no jornal que circulava pelo colégio com a fotografia da minha melhor amiga morta, abraçada, na cama de um quarto de motel, com o professor de literatura, provocando comentários maldosos e indiscretos a respeito dos dois, de quem jamais imaginaria o que ia ao coração daquelas duas pessoas que deram a vida para morrer se amando.

terça-feira, 5 de julho de 2011

SÓ DÁ ELA DESFILANDO PELOS MEUS PENSAMENTOS



SÓ DÁ ELA DESFILANDO PELOS MEUS PENSAMENTOS

Naquela hora eu estava desligado e deixava as coisas fluírem, olhando o firmamento do melhor lugar do mundo, que é onde se deseja ficar em determinado momento. Estava vendo a vida acontecer sem querer fazer parte dela, enquanto ela escorria pelo leito do tempo, doce gozar do ócio. Nada que fizesse marca na memória e no hard disk real. Assim como se fosse uma parada para manutenção. Nessa situação, os sentidos captam as informações que vão deslizando até os neurônios sem serem represadas e deixam de formar o pensamento consistente, consciente. Neste, de outra forma, as sinapses vão sendo represadas como numa barragem e vão se acumulando até formar um pensamento completo, como as águas do rio que correm direto para a vazante e, se dão de cara com o fluxo em sentido contrário, são obrigadas a voltar ou se embolar, aí rola o pega-prá-capar intrigante e gostoso.
Senti, ou imaginei, para me tirar dos devaneios, alguma coisa caindo no meu peito, que me fez voltar à realidade. Prefiro imaginar que foi uma flor arrastada pelo vento, um bilhete da vida que só poderia trazer alguma notícia boa, senão seria uma pedra, um galho espinhento ou cocô de passarinho.
O nome veio escrito na pétala da flor imaginária, mas não era o nome verdadeiro, um pseudônimo. O grande perigo da identidade secreta é ter que assinar alguma coisa, esquecer e cometer suicídio. A imagem dela se formou com a ajuda dos neurônios que só cuidam de imaginação. Estes têm vida longa e são muito diferentes dos que trabalham na realidade, que fazem muito esforço e têm vida curta e, no instante ulterior, já se tornaram passado. Ah, Mulher!... “Se ela soubesse que quando ela passa...” - Todo mundo sabe o que o Tom falou e eu não vou repetir - Você faz os meus neurônios cometerem adultério, na iminência periclitante do perjúrio.