sábado, 30 de novembro de 2013

LINDA ESPERANÇA




LINDA ESPERANÇA

Peguei a gaiola em Manaus às duas horas da tarde e me estendi na rede lá no final do barco. Estava lotada, uma fileira interminável de redes de todas as cores bem próximas umas das outras. Um barulho infernal e as pessoas falando todas ao mesmo tempo, dava a impressão de um zumbido perturbador. Gente de todos os tipos e idades, conversando sentados nos bancos, fumando cigarros fedorentos, deitados nas redes, arrastando seus pertences pelo convés.
Ainda não tinha aceitado a ideia de que a minha Marina tivesse sido assassinada brutalmente naquela região hostil e desumana do garimpo. Estava me sentindo infeliz e doente, sem nenhuma perspectiva de vida, sem destino. Por isso eu entrei naquele barco que chamam de gaiola, são navios típicos da Amazônia, misto de passageiros e carga, sobem e descem os rios sempre lotados de homens, mulheres, animais e todo tipo coisas tanto para uso próprio como para alimentar o comércio da região, uma festa de frutas bonitas e gostosas: piquiá, bacuri, tucumã, guaraná, buriti, açaí, pupunha, taperebá, caçari, bacaba, etc.
Eu não estava me sentindo bem, com frio e o corpo muito quente, já tinha me arrependido de ter pegado aquele barco em lugar de voltar para a minha terra, no sul. A embarcação parava em todos os portos do rio e em cada parada saiam uns e entravam outros tantos. Sem ter o que fazer, quando não estava dormindo, ficava observando os pescadores na beira do rio toda colorida de vermelho e roxo pela frutinha chamada camu-camu que eles usam para pescar o tambaqui.
O espaço do barco já estava quase todo tomado por sacos de farinha, milho, arroz, feijão e os mais diversos tipos de mercadorias, e engradados de galinhas cacarejantes, sem contar as caixas de isopor cheias de peixe, de algumas até escorriam água com cheiro desagradável pelo chão. Para sair das redes as pessoas às vezes tinham que pisar sobre as caixas e sacos.
A gaiola seguia o rumo deslizando no banzeiro das águas rio a fora, com o movimento do barco fazendo com que as redes todas juntas uma das outras ficassem se balançando como se fosse um balé. No meio da viagem o motor do barco parou de funcionar e tivemos que esperar cerca três horas na beira do rio infestado de carapanãs até que fosse consertado para podermos prosseguir a viagem.
Pior foi quando eu precisei ir ao banheiro, a catinga e a sujeira realçadas pelo calor eram insuportáveis e aquelas pessoas todas nem se incomodavam. Acho que já estão acostumadas, virou rotina na vida delas.
Quando chegamos num lugar chamado Trombetas, o barco fez uma parada mais demorada. Depois eu soube que isso acontece normalmente porque ali foi instalado o maior brega da região, Vila Paraíso, é assim que é chamado o Bordel. Eu não tive coragem de sair da minha rede, não tinha forças, estava suando muito e com uma moleza terrível, acho que estava doente, com febre muito alta. Eu estava tendo pesadelos e tive a sensação de que era carregado. Dormi por muito tempo, apesar de acordar várias vezes. Acho que estava delirando.
Numa dessas ocasiões, eu estava deitado numa cama estreita num pequeno quarto e tinha uma mulher passando um líquido cremoso pelo meu corpo todo. Não sei bem o que ela estava fazendo ou se realmente estava acontecendo, tinha a sensação de um líquido bem frio sendo esfregado desde o pescoço até os pés, ela ficava mais tempo passando a mão nas minhas nádegas, mas logo eu voltei a dormir.
Quando acordei de novo, deveria estar anoitecendo, tinha alguém passando um pano úmido na minha testa e na minha boca. Ouvi um barulho de porta se abrindo e alguém perguntou:
“Ele ainda está dormindo?”
“A febre dele está baixando com o unguento da mulher das plantas. Acho que ele está melhorando, já não está muito agitado. Fiz ele engolir o caldo de galinha” - a mulher que estava próximo a mim respondeu, revelando uma voz jovem com o volume controlado.

Eu dormi novamente e pela primeira vez sonhei com a Marina. O sonho parecia muito real, sentia ela beijando o meu corpo como gostava de fazer. Então eu acordei e vi que tinha uma mulher abraçada comigo, com as pernas sobre o meu corpo, os seios grandes sobre o meu peito e com o sexo úmido encostado em mim. Ela percebeu que eu acordei e saiu da cama, perguntou se eu estava me sentindo bem.  “Parecia que você estava tendo um pesadelo” – ela disse.
Eu me lembro que balancei a cabeça afirmativamente, mas voltei a dormir. Sonhei novamente com a Marina, estávamos fazendo amor na beira do rio. Acordei novamente e desta vez tinha outra pessoa passando um pano com água morna em mim. Fingi que estava dormindo porque a sensação era muito gostosa e não queria que ela parasse. Depois de alguns momentos, ela deslizou as duas mãos pelo meu corpo nu, desde a cabeça até os pés, em seguida me cobriu e saiu.
Eu já estava me sentindo bem melhor, queria me levantar para saber que lugar era aquele. Percebi que estava amanhecendo pela penumbra no ambiente e pensei se os sonhos muito reais que tive foram provocados por alguém como aquela mulher que havia saído do quarto. Quem era ela ou elas e porque todas as vezes que eu acordava depois de um sonho tinha uma mulher me acariciando?  Queria descobrir as respostas.
Levantei da cama, enrolei o lençol na cintura e fui olhar pela janelinha. Descobri que eu ainda estava no barco, parado num porto do rio, era de manhã, deveria ser cerca de oito horas. Logo em seguida entrou uma mulher e disse:
 - Bom dia! Parece melhorou, você estava muito doente. Pensei até que iria morrer de malária. Nós lhe trouxemos pro meu camarote porque você estava tão doente e tão fraco que a rede ficava tremendo. Nós cuidamos de você noite e dia. Ficamos com muita pena de ver o estado que você estava, ainda mais sozinho. Eu sei que o seu nome é Anselmo e é do sul. Pelo visto veio do garimpo, mas as tuas coisas estão todas ali, do jeito que encontramos, nada foi tirado, pode ficar sossegado.
Era uma mulher meio gorda, deveria ter perto de quarenta anos, os cabelos pintados de louro e os olhos castanhos.
 - O meu nome é Rosana. Tenho uma casa de mulheres, você sabe, pra agradar aos homens. Estou justamente levando mais duas que estão aqui comigo. Você tem mulher? Você delirou muito e falava o nome Marina o tempo todo, parece que sonhava com ela.
 - Ela morreu, era minha namo... trabalhava num brega lá perto do garimpo. Eu ia tirá-la daquela vida, mas ela foi assassinada, mataram pra roubar o dinheirinho dela.
 - Coitadinha! – Disse ela. E você, está indo pra onde?
 - Não tenho destino certo, dona. Peguei o barco porque estava meio desorientado, não queria pensar na vida, estou muito abalado.
Voltei a me deitar na cama porque estava me sentindo meio tonto.
 - Se você quiser pode vir comigo, pelo menos por uns tempos até se recuperar. É lá em Santarém.
Eu olhei para ela e não disse nada.
 - Eu vou ver se consigo um caldo, você precisa se alimentar.
Eu agradeci e falei:
            - Vou ter que dar um jeito de pagar tudo isso que a senhora fez por mim.
            - Não tem nada que me pagar, não ia deixar você morrer aqui no barco pra ser jogado no rio e virar comida de peixe. Se você for comigo lá pra Santarém eu vou ficar bem satisfeita. Vou pedir à Carol pra trazer alguma coisa pra você comer, ela ficava aqui contigo também, quando não era eu era ela. É uma boa moça. Descanse e não se preocupe.
Não demorou dez minutos ela entrou uma garota trazendo uma tigela fumegando numa bandeja.
- Olá, moço! Já ficou bom? Não vou mais ter que ficar aqui cuidando de você?
            - Teu nome é Carol? Foi você que cuidou de mim? – Estava torcendo que fosse. Ela me deixou atordoado, era linda. Deve ter sido ela que me fez sonhar com a Marina. Comecei a pensar num pretexto para ficar com ela perto de mim por mais tempo.
 - Às vezes era eu e às vezes era a dona Rosana. – Ela falou pousando a bandeja aos meus pés na cama e continuou: acho melhor você se sentar pra poder comer, eu vou ajudar. Você não quer vestir a roupa? Vai ficar assim pelado o tempo todo? Não se importe porque eu já vi tudo, até te lavei com um pano úmido.
Pegou as minhas roupas na mochila e ajudou a me vestir, depois disse para eu sentar e me deu a sopa.
- Assim eu vou querer ficar doente de novo, não sabia que o anjo que cuidou de mim era tão bonito. – Eu disse.
Ela sorriu e perguntou:
 - Você me acha mesmo bonita? Mais bonita que a Marina? A dona Rosana me disse que era sua namorada e que ela morreu. Você gostava muito dela?
 - Muito, eu gostava demais dela. Eu ia até tirá-la daquela vida, mas não deu tempo, foi lá no garimpo.
 - Você sonhou uma vez com ela chegou a se sujar, eu tive que te limpar, fiquei com inveja dela – Ela falou me encarando.
Uma lágrima escorreu do meu olho esquerdo embora ambos estivessem marejados. Ela passou a ponta dos dedos no meu rosto para secar a lágrima e disse:
 - Não fique assim, não tem jeito mesmo. Você não pode fazer ela voltar. Não tarda você encontra um novo amor.
 - É, você tem razão, mas eu tenho uma tristeza muito grande morando aqui no meu peito, chega a doer.
Ela ficou calada me olhando e eu não pude evitar encará-la também, de repente estávamos nos beijando, e descobri que ela era doce como a minha Marina.
 - Eu estou gostando de você desde que você estava aqui delirando com febre. Eu fiquei aqui o tempo todo com você. Só saía quando a dona Rosana me mandava descansar e ela ficava no meu lugar.
Passei as mãos nos cabelos dela, pretos como o breu da noite e muito lisos, iam até o meio da cintura, acabamos por nos beijar de novo.
Quando nos afastamos ela disse:
 - Não sei se a dona Rosana vai me deixar ficar aqui se você já melhorou. Eu vou ser uma de suas meninas, vou fazer a mesma coisa que a sua Marina. Ela disse que a gente ganha um bom dinheiro e se diverte. Só assim eu saí daquela miséria que eu vivia lá em casa, o dinheiro que meu pai ganha é pouco pra sustentar uma penca de filhos, a dona Rosana disse pra minha mãe que eu ia trabalhar de empregada na casa dela.
 - Então eu vou fingir que piorei de novo pra ela deixar você ficar aqui comigo.
            - Não precisa, eu vou dizer pra ela que não é bom você ficar aqui sozinho, que a febre pode voltar e que é melhor eu ficar aqui com você.
 - Tá bom! Eu espero, mas não demore, eu estou muito fraquinho. – Eu disse sorrindo.
Não demorou muito e ela voltou.
            - Pronto já estou aqui seu manhoso. A dona Rosana me deixou ficar fazendo companhia pra você, mas falou que se você passar mal é pra eu ir correndo chamar por ela. Mas disse que é só pra fazer companhia...
            - Então deita aqui bem pertinho de mim pra me esquentar, eu estou com muito frio.
Ela trancou a porta e se deitou ao meu lado e o amor veio em ondas, como o banzeiro do rio e encontrei uma nova razão para seguir o meu caminho.
            - Sabe minha linda cunhantã, estou gostando muito desse teu jeito, com muita vontade de ter você sempre comigo, assim bem juntinho, esse seu corpo como as curvas do rio, cheiroso como as flores que enfeitam as margens e a boca doce como o abiu.
E ela me olhando nos olhos, o muiraquitã pendente de um cordão espremido entre nossos peitos, me disse o que eu queria ouvir.
            - Cunhantã, mas quase cunha.  Também quero muito te dar minha carícia a sempre. Ser sempre sua assim, desse jeito.
Nós saímos do barco em Óbidos, não queria ter outra mulher nas mesmas circunstâncias que facilitaram a morte da Marina. Deixamos um bilhete explicativo para a dona Rosana, junto do qual depositei uma de minhas pedrinhas em pagamento pelo que fez por mim, tanto pela cura da enfermidade como pela aproximação da minha doce Carol que me devolveu a vontade de viver.
Caminhamos de mãos dadas pelo cais em direção à cidade e nos viramos para olhar a embarcação que proporcionou o nosso encontro.
Linda Esperança, o nome escrito em letras azuis no casco nos deu mais vontade de ir em frente para buscar de uma nova vida. 

domingo, 20 de outubro de 2013

CAUSOS DA BOLEIA - O QUE TEM QUE SER SERÁ



Eu seguia tranquilo por estrada, ouvindo uma musiquinha gostosa chamada beijinho doce, com um grupo Barra de Saia, que eu gosto muito, quando, logo depois de uma curva, uma mulher com um lenço branco na cabeça; quando avistou o meu caminhão, saiu correndo para o meio da estrada pedindo para eu parar.
Não tive outra alternativa, encostei uns dez metros à frente dela, levantando poeira no acostamento.
- A senhora ta maluca, dona? Quase lhe atropelei!
- Desculpe, moço. A gente precisa de ajuda. A minha filha tá buchuda e já tá quase nascendo. Tava tudo preparadinho: a bacia com água fervida, os paninhos, o iodo, o álcool, a tesoura...  Só esperando a hora. Quando ela disse que tava chegando, eu fui correndo buscar a parteira, mas ela não tava lá, tinha ido pra cidade ver uma filha que não tava passando bem. O jeito que encontrei foi correr pra estrada procurar por socorro. O primeiro carro que passou foi o caminhão do senhor. Ajuda a gente pelo amor de Deus, senão a criança vai sair aqui na rua e não sei como vai ser.


- Tá bem dona! Entrem logo aí e vamos procurar ajuda. Tomara que dê tempo pra chegar ao posto médico.
Então, elas entraram no caminhão, a mãe e a filha em processo de parto. Deveria ter uns vinte e cinco anos. Saí com o caminhão o mais depressa que pude.
- Meu nome é Rui Barbosa, mas podem me chamar de Rui – eu falei.
- O meu nome é Rosalina e o dela, da minha filha, é Marluce – disse a mãe. – Eu tinha um conhecido que também se chamava Garbosa como o senhor, mas ele já morreu, Deus o tenha.
- Mas o meu nome não é Garbosa, é Barbosa. Meu pai resolveu  homenagear  a um homem célebre da história do Brasil, mas a senhora não deve ter ouvido falar nele.
- Ah, Desculpe! Eu entendi o senhor dizer Garbosa. Esse seu Barbosa eu não conheci.
- É o primeiro neto da senhora? – Perguntei.
- Não, só dela eu já tenho mais o Mauro e o Marquinho. No total são oito.
-Tá certo, sim! Aqui no interior não tem muita diversão mesmo, não é? Além do mais estamos precisando de braços pra trabalhar no campo. Tem muita gente indo pra cidade morar em favela e ser operário - eu falei.
A moça começou a gemer e a falar que não ia dar tempo:
- Mãe, tô sentido muito molhado aqui em baixo! - Começou a fazer cara de sofrimento e pôs a mão na direção da saída de bebês.
- Deixa eu ver - disse a mãe, levantando um pouquinho o vestido da moça. - Nossa mãe do céu! Está muito molhada, acho que estourou a bolsa!
- Ai, Eu não tô aguentando! – Disse a filha – Meu Deus, vai sair aqui mesmo!
Não deu para eu continuar. Tive que parar o caminhão e encostei-o na beirada da estrada, tomando o cuidado de estacionar ao abrigo de uma árvore bem grande, que proporcionava uma boa área de sombra e falei:
- Se não tem jeito e ela tá querendo sair, vamos deixar que venha ao mundo. Vamos lá! Mãos à obra! A senhora já é avó deve saber lidar com isso, não é dona Rosalina?
- Eu não sei disso não moço. Os meus foram seis. Os dela e os da Marta eu só limpei e dei o banhinho, mas não aparei porque não sei e tenho medo.
- É dona, mas esse a senhora vai ter que segurar! Se não sabe, vai ter que aprender à força – eu disse.
Perguntei à parturiente:
- Você tá sentindo uma pressão em baixo da barriga Marluce? Assim, contraindo e afrouxando?
- Tô sentindo sim, parece que está forçando pra baixo igual eu senti quando os outros dois nasceram.
- Então tá na hora mesmo. Espera aí!
Fui buscar uma garrafa de álcool e algodão que eu sempre trago comigo na maletinha de primeiros socorros. Aquelas que obrigaram aos motoristas a ter no carro há alguns anos atrás. Desde aquela época, eu sempre tenho no caminhão, é muito útil, tem gaze, esparadrapo, até uma tesourinha e iodo. Limpei o banco com álcool e pedi uma toalha à dona Rosalina para estender e a Marluce poder deitar. Ela se acomodou e dobrou os joelhos. Nessa altura ela já estava fazendo força e caretas para segurar o herdeiro que queria sair de qualquer jeito. Como eu vi que elas não se movimentavam mesmo e acho que era por vergonha, eu falei:
- Moça, você vai ter que tirar a calcinha pra criança poder passar. Pode deixar que eu não vou ficar olhando, até porque nessa situação eu nem vou pensar em nada que possa causar constrangimento pra ninguém. Em situações como esta, a gente tem que deixar essas coisas de lado senão complica tudo.
Então, ela começou a tirar a calcinha sem falar nada. A mãe ajudou a passar a peça pelos joelhos e pés. A dona Rosalina estava tão apavorada, que me entregou a calcinha da filha toda enrodilhada e perguntou para mim:
- E agora? O que eu faço?
-A senhora não tem que fazer nada. Quem tem que fazer é a futura mamãe. – Eu disse enquanto jogava a calcinha no painel.
“Que situação, hein! Por isso eu nunca tinha passado, nem filho eu tive. Como foi acontecer logo comigo!” – Pensei.
- Tá sentindo contração? – Eu perguntei - Se está, faz força pra expulsar o bebê. A barriga já desceu?
- O que?
- Eu perguntei se a barriga já desceu. Dá pra sentir quando a criança se encaixa na saída e a parte de cima da barriga murcha. Eu li sobre isso não sei onde.
- Acho que já tá é saindo!
- Ai meu Deus, Jesus Cristo, Nossa Senhora! – Disse a dona Rosalina.
- Deixe-me ver, Marluce. Não fica com vergonha não moça. Se fosse lá no ambulatório, ia ter mais gente olhando mesmo!
Afastei os joelhos dela e levantei o vestido. Já estava lá a cabecinha passando pelo portal da vida – legal essa que passou pela minha cabeça: “portal da vida”. “Tomara que essa criança tenha muita sorte” - Pensei.  Passei álcool nas mãos e disse para a dona Rosalina fazer a mesma coisa.

- Faz força agora, Marluce! – Eu falei.
Segurei com cuidado a cabecinha da criança e ela veio muito fácil. Escorregou, de repente, e a aparei com as mãos. Era uma menina. Já veio provocando confusão e chorando para reclamar como a maioria das mulheres. Sorte nossa, não deu trabalho nenhum.
- Viu como foi fácil! – Falei, eufórico. Você é uma boa parideira. Saiu sem muito esforço. Sabe que algumas mulheres correm o risco de ter um bebê até quando vão ao vaso sanitário, tal a dilatação que alcançam sem perceber? Essa vai ser manhosa igual à mãe, já saiu chorando a danada!
Então, falei para a avó limpar o narizinho e a boquinha dela para não engolir ou respirar resíduos do líquido.
- Agora, tá na hora de cuidar do cordão umbilical. Acho que vai demorar um pouquinho pra chegar ao ambulatório. A gente vai ter que fazer isso aqui mesmo – eu falei.
Molhei dois pedaços de barbante no álcool e amarrei duas vezes o cordão. Acendi um isqueiro e aqueci as duas lâminas da tesourinha - seguro morreu de velho -. Depois, joguei álcool – é melhor prevenir do que remediar -. Então, eu cortei. Não sei como eu tive coragem. Nunca imaginei que um dia tivesse que fazer aquilo e torço para não ter que fazer de novo. É muita responsabilidade. Depois joguei iodo nas duas pontas, embora eu saiba que a ponta da placenta vai sair junto com ela, mas fiz sei lá por quê. Naquela hora eu só queria fazer tudo com o menor risco possível, afinal eu era “marinheiro de primeira viagem”, pois nem pai fui ainda. Enrolei um pouquinho de gaze e depois disso joguei os utensílios dentro da caixa de primeiros socorros. Lavei as mãos na biquinha do tonel e disse para a dona Rosalina fazer o mesmo e se ajeitar no banco com a criança, que já estava embrulhada numa mantinha. Deixei a Marluce deitada ali mesmo no banco e parti para o ambulatório, torcendo para que tudo tivesse sido feito corretamente.

A viagem até o ambulatório foi silenciosa. Por incrível que pareça nem a menina chorou. Estava aquecidinha no colo da vovó. Chegamos cerca de quarenta minutos depois. A mãe e a criança foram atendidas e ficou tudo bem. A enfermeira me perguntou como aconteceu e o que tinha sido feito. Eu contei com todos os pormenores como aconteceu o parto, quanto à assepsia e aos cuidados com a criança, excluindo os detalhes referentes ao comportamento da mãe e dá avó. Falei que eu fiquei muito nervoso. Ela me disse que estava tudo bem com a criança e com a mãe. Que deu tudo certo e para eu não me preocupar, dando-me uns tapinhas nas costas.
Então, eu fui tomar um cafezinho na cantina para relaxar e me joguei num banco, exausto. Pensava como eu tive coragem para fazer aquilo tudo, quando vieram me chamar dizendo que a Marluce estava chamando o papai.
- Eu não sou o pai! Eu estou nervoso assim, porque tive que fazer um parto no meio da estrada e eu nunca tinha feito isso antes.
- Mas ela quer falar contigo. O senhor não é o Rui?
- Eu sou o Rui, Rui Barbosa, mas pode me chamar só de Rui.
Eu segui a enfermeira. A Marluce e a dona Rosalina estavam muito contentes. A menininha estava mamando e dormindo.
- Obrigada seu Rui! O senhor é um anjo que veio do céu para me ajudar, foi Deus que botou o senhor no meu caminho – disse a Marluce.
- Que isso dona! Não tinha jeito mesmo! Pra tudo tem a primeira vez né? No meu caso espero que seja a última.
- O senhor pode ser padrinho da Ritinha. O nome dela vai ser Rita,. Decidi agora, em sua homenagem. Pensei em um nome de mulher parecido com Rui, mas eu não conheço muito, Ruía e Ruiva acho que não são nome de gente, então resolvi chamar de Rita, pelo menos começa igual ao seu.
- Olha Marluce, eu não sou ligado em religião. Posso ser amigo de vocês, mas nem sei se vou vê-las de novo. Portanto, é melhor vocês escolherem uma pessoa que esteja mais próximo dela para estar presente. Senão, quando ela crescer, vai pensar que não tem padrinho. Pode ser que essa seja a última vez que eu veja vocês... de qualquer forma, muito obrigado pela lembrança. Sejam muito felizes e que a Ritinha tenha muita sorte na vida. Quando ela crescer, conta como foi que ela veio ao mundo. No mínimo deve achar interessante ter uma história diferente pra contar sobre o início da sua vida, a aventura que nós vivemos não é mesmo? Eu estou indo embora, a estrada me espera. Adeus, e felicidades pra vocês.