quarta-feira, 28 de outubro de 2015

NADA DURA PARA SEMPRE



NADA DURA PARA SEMPRE

A velha senhora já estava pensando mesmo em comprar outro guarda-roupa. Aquele que estava no seu quarto foi comprado logo que começou a montar o enxoval para casar, junto com a cama, a mesinha de cabeceira – criado mudo, como o Alfredo costuma chamar. Quanta saudade dos velhos tempos! Nele guardou todas as roupas: os lençóis, as fronhas, colchas, as roupas de uso diário e as íntimas do casal. Não estavam mais lá os pertences do falecido marido, pois não tinha motivos para guardá-los. Às vezes, as lembranças eram caminho para a tristeza e a constatação da solidão.
O espelho, na parte interna da porta, era seu confidente. Ele lhe dizia se ela estava bonita e lhe ajudava a decidir qual roupa usar, a passar o batom e o talco perfumado nas axilas – com pelos, porque não é dessa época em que as mulheres depilam tudo, até outras partes.
 
Aquela lagartixa macho vivia por ali há algum tempo. Quando o falecido ainda era vivo, ela corria perigo de vida, porque ele sempre ouviu dizer que se uma lagartixa perde a cauda, é sinal de azar para quem vive na casa. A velha, por outro lado, nunca a incomodou e a lagartixa ficou tranquila depois que ele se foi. Assim, deixou de correr o risco de perder a vida e o rabo, e manteve a possibilidade de se defender. Encontrou num vão do piso do velho guarda-roupa, o espaço perfeito para passar o dia e aguardar a noite, quando a velha senhora acendia a luz do quarto e as mariposas e outros insetinhos apetitosos que vinham do mato ficavam voando ao redor da lâmpada até se cansarem. Na realidade, nem sei por que eles, às vezes, pousam nas paredes ou caem no chão, então é só dar o bote e pronto, mais um na barriga – lagartixa que vive dentro de casa tem a cor meio creme, quase transparente, dá até para ver o conteúdo do interior.
 
Assim, a vida ia passando naquela monotonia cheirando a naftalina, até que, certa manhã, a porta do guarda-roupa soltou dos pinos e foi cair justamente no dedão do pé da velha, que chegou a ver estrelas. Acho que foi a primeira vez que ela falou um palavrão, aliás, nem sabe se merda ainda pertence a essa categoria, mas teria que confessar ao padre, senão, não poderia comungar na missa de domingo. Ela ficou tão cheia de raiva que resolveu mandar todas as recordações para o espaço e, pela última vez, pediu a opinião ao espelho que, mesmo tombado, não se negou a ajudá-la mais uma vez a  pentear e pintar-se devolvendo-lhe um sorriso de aprovação, apesar da dor no dedão. Sempre aprovava, não tinha muito que fazer, assim pelo menos ficava com o moral elevado.
Antes de sair para comprar um armário novo, pediu ao faxineiro do prédio para quebrar o velho guarda-roupa e jogar os destroços na praça, à espera do lixeiro, que na certa, não iria gostar de ter que carregar aquele monte de madeira inútil, incluindo a moradia da lagartixa macho, que, pega de surpresa, nem teve tempo de procurar outro local para ficar, até porque não sabia o que estava acontecendo.
Como todas as suas roupas e outros utensílios ficaram jogados sobre a cama, a velha senhora fez questão que o vendedor mandasse entregar e montar o novo móvel no mesmo dia.
Pobre lagartixa! Teve que abandonar, lamentosa, o aconchegante fundo de armário, bem de acordo com as suas conveniências, receosa de um destino ainda mais cruel, fogueira, por exemplo. Mas, logo encontrou uma fenda entre duas pedras que orlam um canteiro onde vive, bem ao centro, um pé de abricó-de-macaco. Escolheu um local em que bate sol pela manhã, assim não sentirá muito calor. À tarde, do outro lado, sem a proteção das folhas da árvore, a pedra esquenta tanto que é impossível sobreviver ali, dá para sentir as patinhas queimando ao caminhar por elas.
 
A pobre teve que mudar seus hábitos para enfrentar essa nova vida de lagartixa de rua. Pobre coitada, caseira, despreparada para a vida de indigente, longe da fartura a que estava habituada, teve que mudar inclusive os alimentares após o inesperado despejo. Contentava-se agora com formigas, ácido fórmico não tem um gosto muito bom, aranhas, baratas, nem pensar! - acha que não iria aguentar comer baratas. Se ainda fossem aquelas pequenininhas, francesinhas, que viviam lá no sobrado, talvez até tentasse, mas essas asquerosas da rua, do esgoto, arhg! Grilos e outros insetinhos estranhos... vai fazer o possível, não pode é morrer de fome. Começou a sonhar em comer uma borboleta, para experimentar. Às vezes aparecem umas mosquinhas pretas, mas só quando algum animal faz cocô ali nas proximidades e enquanto ele não seca. Mas, apesar do infortúnio, não vai se entregar facilmente. Afinal, é um digno representante dos lagartos (lacertários), répteis urbanos. A lagartixa doméstica (Hemidactylus mabouia) é um pequeno lagarto e um excelente animal de estimação, uma vez que come aranhas, insetos, lacrais, etc e não transmite nenhuma doença ao ser humano, porque é muito limpo e não vive em sujeira. Em alguns lugares é chamada de taruíra.
A lagartixa macho notou que a sua pele, antes creme-claro, passou a mudar a tonalidade e está ficando cinza, bem escuro, com alguns pontinhos brancos, bem de acordo com o seu novo ambiente. Assim, a própria natureza, pelo fenômeno do mimetismo, está lhe dando uma mãozinha para se proteger. Até que ela gostou, deu um aspecto mais viril, só que meio vagabundo, brejeiro, morador de rua. Agora tem que ficar mais esperta e essa nova cor veio a calhar, senão vai acabar virando comida de alguém. Ela tem receio de tudo, não está acostumada àquele ambiente, acha meio promíscuo. E se aparecer algum animal, ela não sabe se existe, cujo prato preferido seja lagartixa? A natureza é muito rica... nesse mundo existem coisas que você nem imagina. Adicionou mais um à sua lista de medos, anda com um receio danado de virar petisco de urubu, aquela ave enorme, preta, feia, fedorenta e asquerosa, que ela viu comendo os restos de um cachorro que se aventurou a atravessar a rua e foi atropelado. Se o urubu come carne podre, imagine os pulinhos de satisfação que ele daria ao ter no bico uma lagartixa limpinha, recém abandonada na rua.
 
Acabou aquela moleza de dormir tranquila durante o dia e à noite era só partir para um banquete certo. Depois do despejo, por força das circunstâncias, teve que fazer uma mudança radical, tanto no que se refere ao horário quanto à qualidade da comida. Tem que sair à caça durante o dia, porque à noite, no escuro, os insetos ficam lá em cima voando em volta da lâmpada do poste, quando tem lâmpada, claro, e ela, para piorar a situação, tem medo de altura, adquirido num dia em que ela estava lá na parede do quarto da velha, prestes a saltar sobre uma mosquinha apetitosa, quando bateram a porta com tanta força que chegou a estremecer a parede, então, não deu outra, foi direto para o chão. Ficou quase uma semana mancando de duas patinhas, uma na frente e outra atrás. Chegou a emagrecer, porque teve que se contentar com aqueles bichinhos que caem no chão. Além do mais, uns pássaros estranhos passam voando por ali, próximo à lâmpada, quando começa a escurecer. É melhor não se arriscar.
À tardinha ainda aparecem alguns mosquitinhos que ficam voando rente à grama. Eles têm um aspecto apetitoso, mas a boca da noite amedronta e ela também tem medo de se aventurar, porque aparecem aqueles pássaros esquisitos e uns morcegos que ela não sabe se gostam de comer lagartixa, portanto resolveu “ficar na dela” e não explorar muito aquele mundo novo. Ah, Como sonha com aquele ambiente em que morava antes! Mas nem tem ideia de como voltar para lá, nem sabe onde é. Além disso, imagine uma lagartixa atravessando a rua! Do seu guarda-roupa, uma mansão comparada a sua nova residência, só restou um pedaço do espelho, que refletia o colorido do sol quando ele se despedia. Mas nem isso durou muito, logo a sua superfície ficou embaçada e suja de resíduos de terra espalhados pelos pingos de chuva e de titica de passarinho, até que deixou de ser um espelho por não conseguir mais refletir.
A vida na praça é mais agitada, sem aquela monotonia do quarto da velha, cheirando a perfume barato. “Quem dera poder voltar a sentir nas narinas aquele perfume que agora seria bem agradável e inspira segurança. Sentir aquele cheirinho de novo, até da naftalina, humm!” – Vivia sonhando. Um monte de espécies diferentes, perigo a toda hora, cachorro fazendo xixi... Pior seria levar um pisão do dono do cachorro e perder o rabo, isso até que daria para contornar, seria só por uns tempos, felizmente a lagartixa tem essa capacidade de refazer a cauda, é a autonomia caudal. Assim, se alguém pisar no seu rabo ou estiver na iminência de virar comida de pássaro ou outro animal qualquer, larga o rabo a sua disposição e ele acaba por se contentar em comer a cauda, que fica lá se debatendo para chamar sua atenção, enquanto ela foge com o resto do corpo. Depois de algum tempo, a cauda cresce novamente e ela volta a ficar inteira.
“Assim eu perco a cauda, mas não perco a vida” – conclui.
Certa vez aconteceu. Ela nem sabia disso, mas de repente pulou um gato lá na janela do quarto e a lagartixa tomou um susto tão grande que o seu rabo se soltou e ficou lá se mexendo. Ela correu para o forro do armário, pensava que iria ficar cotó, até que ele começou a crescer novamente e ela ficou satisfeita. Falando nisso, outro dia ela conheceu uma minhoca. A princípio, pensou que tivesse encontrado outra lagartixa, porque ela anda de modo parecido com o rabo de lagartixa se debatendo, mas era a minhoca. Coitada virou comida de pardal.
 
Quando chegou a primavera, ela começou a sentir um cheiro diferente. Na verdade era um perfume delicioso que vinha do alto da árvore , do pé de abricó-de-macaco, plantado no centro do canteiro. Sentiu-se totalmente atraída por aquele aroma agradável e decidiu que iria descobrir de onde ele provinha. Então, aventurou-se a escalar o tronco. Ficou alucinada quando os seus olhos bateram na coisa mais linda que ele já tinha visto na sua existência: a linda flor que aquela árvore tinha o dom de produzir. Bem diferente daquelas flores de plástico, sujas de cocô de mosca, espetadas numa jarra que ficava em cima da penteadeira do quarto daquela senhora em cuja casa antes morava. Então ela deu-se conta que nunca tinha sentido nada no que diz respeito a gostar de alguma coisa, de uma outra lagartixa, por exemplo. Na verdade, onde ela morava nunca viu outro animal de sua espécie. Nunca tinha pensado nisso, mas também nunca se preocupou.
 
Depois que passou a viver no outro ambiente, tomou conhecimento que existe sexo, macho e fêmea. Pombos, cachorros, grilos, gatos, que circulam ali pela praça e até acasalam-se para gerar filhotes. Ela tem dúvidas de como as lagartixas perpetuam a espécie. Nunca viu uma lagartixa fêmea, ou será que ela não é macho ou nem uma coisa nem outra, como as minhocas que se reproduzem por regeneração do corpo? Se elas se partirem, formam-se novos indivíduos a partir de cada pedaço, apesar de que são hermafroditas e se reproduzem também por troca de espermatozoides e precisam de outra para esse processo.
Ela prefere pensar que se reproduz por regeneração, na hipótese de não existirem lagartixas de sexos diferentes, até porque o processo de regeneração do rabo é parecido.
Bem que ela gostaria de se deparar com uma lagartixa de sexo diferente do seu, de alguma forma ela iria notar a diferença, apesar de não saber qual. Se não for aparente visualmente, a natureza sempre se encarrega de fornecer os subsídios necessários.
 Num dia, bem cedo, apareceu outra minhoca por ali. Na verdade, não sabe se era uma ou duas, porque entrava por um buraco e saía por outro ou entravam ou saiam de dois  buracos diferentes.
Ela percebeu que estava sentindo uma coisa diferente pela flor linda do abricó-de- macaco. Não saia da sua cabeça, dos olhos... estava apaixonada. Resolveu que seria sua fêmea e passou a viver ali, abraçadinha com a flor a maior parte do tempo. Mas o período de paixão foi curto, porque a bela flor começou a murchar e, numa manhã, incitada por um ventinho mais forte, as pétalas se desprenderam e caíram no chão. Restou à inconsolável lagartixa, carregar o que sobrou da sua flor, sem vida, para o seu ninho. Assim, ela poderia continuar aquecendo o seu corpo mesmo depois de morta.
 
Dias depois, justamente no lugar onde estava a bem-querida flor, começou a aparecer uma estrutura que parecia um ovo. A lagartixa macho, agora tinha certeza que era, ficou muito feliz porque achava que ia ser pai e passava os dias examinando a evolução de sua cria. Pior que o trabalho era em dobro, tinha que fazer o papel de pai e de mãe para cuidar do pobrezinho, que já ia nascer órfão. Depois de um tempo ela ficou muito preocupada, achando que algo tinha dado errado, problema talvez provocado pelo cruzamento de espécies diferentes, mais que espécies, estruturas biológicas diferentes. O motivo da preocupação foi que o “ovo” começou a crescer muito. Já estava enorme, com uma casca grossa e áspera marrom-claro. Estava muito preocupada com o filhote que sairia de dentro daquele ovo gigante, anômalo, uma aberração com certeza.
 
A pobre lagartixa começou a ficar com muito medo daquilo tudo, achando que tinha provocado um dano à natureza se desviando do curso normal estabelecido para cada espécie pela miscigenação e resolveu não subir mais na árvore. Lá de baixo ela via aquela bola enorme pendurada e se martirizava porque, na ânsia de perpetuarem aquele belo sentimento de amor, ela e sua linda flor acabaram por gerar aquele monstrengo. Começou, então, a desenvolver complexo de culpa por ter contribuído para alterar o processo natural das coisas, pela perversão que ela praticou, pela sua falta de escrúpulos, pela depravação e sua inexperiência, provocando aquele desvio que não sabia o que poderia causar.
Foi num momento desses que, distraída com suas lamentações, não percebeu que o fruto desprendeu-se do caule, arremessando-se para o chão e esmagou contra o solo o infeliz animalzinho, cujo rabo soltou-se e ficou lá, inutilmente, por cerca de um minuto, debatendo-se para tentar salvar-lhe a vida, pelo mecanismo de defesa que a natureza lhe reservou.
 

Um comentário:

  1. Lindo conto, meu querido irmão. Sempre simpatizei com lagartichas e adoro flores lindas, árvores e até velhinhas com perfume barato porque me lembram d. Maria, nossa velha vizinha. Até lixo pode ser bonito quando tratado por Vik Muniz. Parabéns

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