CAUSOS
DA BOLEIA - NAS CURVAS DO TEU CORPO, CAPOTEI MEU CORAÇÃO
Eu fiquei curioso e como a carga que
transportava na ocasião não era perecível e, também, estava um pouco adiantado,
resolvi ficar na cidade para me divertir um pouquinho. Depois de almoçar, fui
assistir ao treino de classificação naquele mesmo dia e fiquei sabendo que
existe até campeonato nacional de jericos. Estavam lá sentadas nas
arquibancadas as equipes das fazendas, e me distraí olhando curioso a alegria
do pessoal gritando e incentivando. De repente, eu me dei conta de que tinha
uma mulher olhando em minha direção e tive a impressão de que era para mim.
Olhei para trás, mas não tinha ninguém. As arquibancadas estavam vazias perto
de onde eu estava. Então concluí, logicamente, que era eu o objeto da sua
observação. Quando voltei a olhar para ela, foi um sorriso que eu vi antes que
ela desviasse o olhar. Estava se divertindo com a minha atitude.
Eu não estava acreditando. Ela era linda...
Cabelos loiros escorridos amarrados como um rabo de cavalo, olhos azuis
incrivelmente belos. Quando ela voltou a olhar, eu acenei com a mão, ainda meio
tímido, desconfiado, pronto para disfarçar. Para minha surpresa, ela acenou de
volta, e mais, me convidou para que me aproximasse dela. Eu fui, claro. De
perto, ela era ainda mais bonita, os olhos, a boca... Perfeita, não acreditei
que estivesse acontecendo comigo.
– Rui Barbosa
– O quê?
– Rui Barbosa é o meu nome!
– Maria Augusta
– O quê?
– Maria Augusta, o meu nome!
– Eu não acredito. Ou é muita coincidência ou
você está brincando comigo. Maria Augusta era o nome da mulher de Rui Barbosa,
que foi ministro da Fazenda. Meu pai me registrou com esse nome em homenagem a
ele, se é que eu posso ser homenagem a alguém, e ao meu avô, que também tinha
esse nome. Minha avó não era Maria Augusta, o nome dela era Paloma.
Ela riu, e um brilho especial nos seus olhos me
revelou que ela estava se divertindo comigo.
– É mentirinha mesmo, meu nome não é Maria Augusta.
É que eu li recentemente um artigo sobre Rui Barbosa...
Pôs a mão no meu braço e se levantou um pouquinho
para olhar um lance lá no treino dos jericos (eu tinha até me esquecido deles),
quando o pessoal começou a gritar porque um deles havia perdido a direção se
chocado com a cerca. Uma sensação deliciosa percorreu o meu corpo ao toque
daquela mãozinha macia na pele do meu braço. Depois, sentou-se novamente, mas
ficou por mais alguns minutos com a mão no meu braço. Eu estava adorando.
– Por isso eu sei o nome da mulher dele – ela
voltou a falar –, então resolvi brincar contigo por causa do nome. O meu nome é
Paloma, isso é coincidência – ela falou olhando pra mim. - Paloma Brien.
Acho que era Brien o sobrenome, pelo menos foi
isso que eu entendi.
– O que você acha?
– De quê? – eu perguntei.
– Do nome, ora!
– É tudo lindo. O nome é lindo, o mesmo nome da
minha avó, mulher do Rui Barbosa, meu avô (eu ainda não estava acreditando).
Mas eu não sei se você está brincando comigo. Você é muito engraçadinha.
– Não sabia que sou engraçadinha, mas eu não estou
brincando. Meu nome é Paloma mesmo. Sério. Você já tinha assistido a alguma
corrida de jericos?
– Eu não. Nem sabia que isso existia. Eu já vi
jericos correndo, mas eram jumentos na beira da estrada no Nordeste. Tem tanto
jumento abandonado por lá que estão até causando acidentes.
– Eu sei, eu vi na televisão.
– Eu vi ao vivo, quase atropelei um.
– Eu não estou treinando hoje.
– Treinando pra quê?
– Pra corrida de jericos ora! Eu participo da
corrida pela minha fazenda. Treinei ontem, você não viu?
– Vai me enganar agora que você corre naquele
troço ali com esse corpinho aí! Você é mesmo brincalhona ou tá me achando com
cara de bobo?
– Não estou brincando não, eu corro mesmo. Não
acredita que uma mulher possa fazer isso? Vai dizer que é machista?
– Não sou machista, não, muito pelo contrário,
mas pelo que vejo você está sempre brincando, e não sei se estou sendo
enrolado. Mas ontem eu não estava aqui.
Cheguei hoje, ou melhor, dei uma parada pra almoçar e esse burburinho
todo que está rolando aqui por causa da corrida chamou minha atenção e aguçou
minha curiosidade. Então, eu vim ver o treino.
– Depois eu vi você ali sozinho e o chamei e o
senhor ficou fazendo cara de bobão, de desentendido...
– Fazendo cara de bobão nada, eu não estava acreditando
mesmo que era comigo.
– Por quê?
– Eu sei lá... Geralmente as coisas não
acontecem assim. Eu pensei que tinha algum amigo seu atrás de mim ou que você
estivesse me confundindo com alguém.
– Tá bom, vou fingir que acredito! Vai dizer também
que não estava olhando pra mim?
A mulher era danada, cheia de autonomia, estava
me deixando enrolado. Obrigou-me a agir da mesma forma.
– É, eu estava olhando, sim. Você é muito
bonita, mas estava na minha, Sabe como é, aqui no interior... Vai que o seu
marido é ciumento e percebe meu interesse, e eu aqui, sozinho... Sei lá o que
pode acontecer...
– Não sou nem casada, seu bobo, ou melhor, sou
viúva. Meu marido morreu faz dois anos, assim, de repente, de enfarte. Você não
é casado, né? Não usa aliança e não tem cara de quem tira pra não se
denunciar... Agora, de perto, eu estou vendo que nem tem marca no dedo.
– Eu sou divorciado, faz mais de sete anos. Sou
caminhoneiro, e minha ex-mulher não aceitava que eu ficasse muito tempo fora de
casa. Era muito ciumenta, sempre achava que eu andava com mulheres nas minhas
viagens. Daí, não deu certo.
– Logo vi que você não é daqui. Primeiro porque
nunca tinha lhe visto e também porque é diferente dos homens daqui. Acho que é
o jeito, sei lá.
– Eu sou do Rio de Janeiro.
– Do Rio! Uau! Deve ser legal essa sua vida,
rodar pelo Brasil inteiro. Eu nunca fui ao Rio, dizem que é muito bonito. O
Cristo Redentor, as praias... Ipanema... Sou louca pra conhecer Ipanema. Sou fã
número um de Vinicius de Moraes. Tem uma rua lá em Ipanema com o nome dele não
é? Ele morava lá. O único problema é a violência. Disso eu tenho medo. É
perigoso mesmo?
– Tem muito assalto, contravenção, guerra de gangues
dos morros. Tem muito morro lá no Rio, quase todos cheios de favelas. É uma
pena! O Rio de Janeiro é muito bonito, e isso afasta os turistas. Eu agora não
fico muito lá. Praticamente moro no meu caminhão.
– Eu estou precisando de um parceiro pra
corrida de amanhã. O meu irmão não pode correr porque quebrou o braço.Você
quer?
– Mas eu nunca dirigi um troço desses!
– Não precisa dirigir,
só se for necessário. Vou mostrar pra você que as mulheres também podem ser
piloto.
– Tá bom, então, está combinado, parceira!
Nós nem havíamos percebido que os treinos já tinham
terminado e que só estávamos nós dois sentados nas arquibancadas.
– Aonde você vai ficar? – ela perguntou.
– Eu fico por aqui mesmo na cidade. Encosto num
posto de gasolina e durmo no meu caminhão. Tem uma caminha na boleia.
– Então leva ele lá pra fazenda, meus pais vão adorar conversar com
você. Eles gostam muito de histórias, e você deve ter muita coisa pra contar.
Eles, e eu também. Somos descendentes de holandeses. Vieram de Santa Catarina
nos anos 60 com os pais deles e se estabeleceram aqui. Mais tarde a gente pode
vir aqui na cidade. Vai ter shows com bandas, forró e queima de fogos de artifício.
– Já que é assim, eu aceito o convite.
Fomos para a casa dela no meu caminhão. Era uma
fazenda grande, um casarão enorme. Apresentou-me aos seus pais e perguntou se
eu podia dormir lá. Não posso me esquecer da maneira que ela falou:
– Pai, mãe, esse é o Rui Barbosa. Não é aquele,
mas podem chamá-lo só de Rui.
Disse brincando que eu era piloto de jericos, o
melhor do Rio de Janeiro, que não tinha encontrado vaga no hotel. Eu falei que
era brincadeira dela, que nunca tinha visto um jerico antes. A mãe dela se
limitou a dizer:
– Essa Paloma! Sempre foi assim, brincalhona,
desde menina, não liga não seu Rui!
– É, eu já percebi – eu disse.
Tomei um banho maravilhoso. Jantamos cedo, uma comida
deliciosa, que havia muito eu não comia. Conversamos um pouco na varanda, eu,
ela, seus pais e o irmão com a esposa. Eles têm duas filhinhas, loirinhas como
Paloma. Depois fomos para a cidade assistir à festa, no carro dela, e ficamos
lá até quase meia noite. Ela comentou que queria estar descansada no dia seguinte
para ganharmos a corrida. É uma pessoa muito agradável, e tinha razão, eu estava
todo bobo do lado dela. Já estava me sentindo o dono do pedaço e nem tinha dado
um beijo ainda, só olhares, sorrisos, elogios e
encostadas de mão. Haja pretextos para isso! Pior que eu estava custando a
acreditar que um mulherão daqueles estivesse me dando bola. Ainda estava meio
inseguro.
Quando chegamos à fazenda, já tinham preparado
um quarto bem aconchegante para mim. Como foi bom dormir naquela casa, livre de
preocupações... As roupas limpas, macias e cheirosas. Dormi o sono dos justos naquele
ambiente fresquinho e acolhedor.
Acordei com um galo cantando e o sol entrando pela
janela. Abri as cortinas de renda e me espreguicei, recebendo o sol morno no
peito. “Isso é que é vida! Quando me aposentar, vou comprar pelo menos um sitiozinho
num lugar assim, bem afastado, criar umas galinhas e jogar o despertador fora
ou então dar pra um morador de rua, para ele sair cedo da porta das lojas” –
imaginei.
Tomei um banho. O quarto tinha até suíte. “Essa
gente sabe receber os convidados” – pensei.
Não precisei esperar muito, logo ouvi uma
batida na porta, que se abriu sem que eu tivesse tempo de me levantar da
poltrona próxima à janela para dar passagem à figura radiante da Paloma. Uma
visão espetacular. “Como essa mulher consegue ser tão bonita assim, mesmo
quando acorda? Ela complementaria muito bem o meu sonho do sítio” – pensei.
– Vai descer pra tomar café ou prefere que eu
traga aqui pra você? – ela perguntou,
aproximando-se de mim e, pra minha surpresa, me dando um beijo no rosto. Ainda
bem que eu tinha feito a barba. Acho que ela percebeu o meu espanto e
perguntou:
– O que foi? Não gostou do meu bom-dia? Dormiu
mal?
– Não! Foi uma das melhores noites da minha
vida. Acordei muito descansado e satisfeito. É que eu não esperava que você
entrasse aqui assim e...
– Então, vamos tomar café. Daqui a pouco a
gente vai pra corrida.
Pegou-me pela mão e saiu quase me arrastando para
a cozinha, feliz da vida.
Já estava chegando a hora da corrida, a gente
foi conversando no próprio jerico. Paloma era muito divertida, simples,
simpática.
Foi dada a largada, com muitos jericos correndo
na pista circular; em alguns trechos cheios de lama, chegava a espirrar na
gente. Teve uma vez em que ela fez uma manobra e
eu quase caí do carro. Nós rimos muito e eu me diverti a valer. Depois de
muitas voltas e risadas, chegamos em quinto lugar, e ela me deu um beijo nos
lábios, para minha surpresa. Voltamos satisfeitos para a fazenda. Ela estava
muito feliz. Eu não sei se ela ficava triste em algum momento. Era encantadora.
Imagine como eu já estava me sentindo naquela altura.
À noite, depois do jantar, fomos novamente conversar
na varanda, e Paloma insistia em ficar com os olhos lindos em frente aos meus;
parecia que estava querendo me ler. Eu já estava até constrangido, com medo de
que seus pais percebessem. Então eu disse:
– Bem, pessoal, a conversa está muito boa, mas,
se vocês permitirem, eu vou dormir, porque eu pretendo ir embora amanhã. Isso aqui está muito
bom, vocês são ótimas companhias, sabem receber as pessoas, são muito
hospitaleiros, mas eu não posso ficar me
aproveitando disso. Tenho que ganhar a vida e a minha vida por enquanto é na
estrada. Vou embora pela manhã. Aqui está meu endereço no Rio e o meu telefone.
Se precisarem de alguma coisa, estarei sempre pronto a atendê-los.
– Está certo! – disse o pai de Paloma.
– Vou lá ao galinheiro falar pro galo não
cantar amanhã de manhã, senão ele vai virar canja – Disse a Paloma.
Eu olhei para ela e sorrindo, desejei boa-noite
a todos e fui para o quarto. Troquei a roupa e me deitei, mas não conseguia
dormir. Ela não saía da minha cabeça. Aqueles olhos azuis me olhando, o beijo
que ela me deu quando acabou a corrida, me pegando pela mão de manhã, beijando
o meu rosto quando entrou no quarto... Estava gamado nela. Era uma pena eu ter
que ir embora no dia seguinte, mas não tinha jeito. Virava para um lado e para
o outro na cama e os meus pensamentos não me deixavam dormir. Passava da
meia-noite quando a porta do quarto se abriu devagarzinho. Ela entrou na ponta
dos pés, fechou a porta e literalmente se deitou em cima de mim. Estava de baby-doll e eu senti os seios pontudos
de encontro ao meu peito e a sua boca procurando a minha. Nem me deu tempo de
pronunciar qualquer coisa.
– Vim lhe dar o
prêmio pela corrida de hoje e receber o meu, de você. O que mais quero desde
que lhe vi ontem. Eu estou apaixonada por você.
– Então somos dois – eu disse.
Não deu outra: amamo-nos como se fosse uma explosão
de supernova, por muito tempo. Não sei se foi porque eu estava gostando muito
dela, mas é uma mulher maravilhosa, divina, soube me amar e me fez amá-la como
nenhuma outra. Nem percebi quando eu dormi. O galo me acordou novamente, e ela
ainda estava ali, deitada ao meu lado, com os cabelos dourados espalhados pela
cama e com uma das pernas em cima de mim; nua, linda como um anjo. Eu queria
que o tempo parasse naquele momento. Foi uma pena ter que acordá-la.
Beijamo-nos apaixonados mais uma vez antes de ela se vestir, ou melhor, vestir
a calcinha e a camisola e voltar para o quarto dela. Em poucos minutos a
família toda iria acordar para um novo dia. Ela soube se aproveitar daquele
momento para fazer deixar gravado para sempre na minha memória a bela imagem
nua da mais bonita mulher que eu conheci.
Depois do café, me despedi de todos e ela me acompanhou
até a entrada da fazenda montada num cavalo e se despediu de mim com um beijo
de mais ou menos dez minutos que por pouco não me fez ficar para ver no que
dava. Depois ela disse, com os olhos cheios d’água:
– Vai à luta, piloto de jerico!
Abraçou-me como se estivesse pedindo para eu ficar.
Eu passei a mão nos cabelos dela, no rosto, nos beijamos de novo. Subi no
caminhão e fui embora. Parei um momento com vontade de voltar. “Eu acho que
daria um bom motorista de jerico”– pensei. Mas acelerei para só me arrepender
quando estivesse bem longe.
Quando parei num posto de gasolina para
almoçar, já estava muito distante de Alto Paraíso com uma saudade fresquinha no
meu coração. Abri a cortina do compartimento de dormir da boleia e encontrei um
bilhete que eu conservo comigo, com a marca da boca da Paloma feita pelos
lábios pintados de batom, onde ela escreveu: “Daria tudo pra você ficar aqui
comigo. Gostei de você logo que meus olhos lhe viram e me apaixonei quando lhe
conheci. Tinha esperança de que você fosse o meu homem. A última noite foi a
melhor da minha vida. Agora eu amo você. Se tivesse me convidado para ir
consigo, eu estaria aí, ao seu lado, bem mais feliz do que estou aqui, tenho
certeza. Você deixou comigo uma parte sua, e eu sei que vai voltar. Vou ficar
esperando. Até breve, meu amor. Sua Paloma.
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