quarta-feira, 18 de novembro de 2015

CAUSOS DA BOLEIA - NAS CURVAS DO TEU CORPO, CAPOTEI MEU CORAÇÃO


CAUSOS DA BOLEIA - NAS CURVAS DO TEU CORPO, CAPOTEI MEU CORAÇÃO

         Dei uma parada em Alto Paraíso, em Rondônia, para almoçar. A cidade estava em clima de festa; no dia seguinte ia acontecer mais uma rodada do campeonato de corrida de jericos. Não é uma corrida de jericos, aqueles da família dos burros, os que correm nas pistas do jericódromo são os veículos utilizados na lida diária das fazendas, que são pau para toda obra, servem para tudo dentro delas. São uns veículos engraçados, não têm capota como os automóveis nem cabine como os caminhões. Montados sobre o chassi de um jipe antigo, foram levados para aquela região na década de 1960 pelos imigrantes catarinenses. Alguns só têm a carroceria, que serve para transportar as coisas produzidas nas fazendas, e geralmente utilizam os mesmos motores que movimentam os geradores de energia elétrica. Correm no máximo 60 quilômetros por hora e são utilizados para carregar tudo na zona rural. Neles os pequenos produtores transportam os seus produtos para a cidade e levam até as crianças para a escola.

Eu fiquei curioso e como a carga que transportava na ocasião não era perecível e, também, estava um pouco adiantado, resolvi ficar na cidade para me divertir um pouquinho. Depois de almoçar, fui assistir ao treino de classificação naquele mesmo dia e fiquei sabendo que existe até campeonato nacional de jericos. Estavam lá sentadas nas arquibancadas as equipes das fazendas, e me distraí olhando curioso a alegria do pessoal gritando e incentivando. De repente, eu me dei conta de que tinha uma mulher olhando em minha direção e tive a impressão de que era para mim. Olhei para trás, mas não tinha ninguém. As arquibancadas estavam vazias perto de onde eu estava. Então concluí, logicamente, que era eu o objeto da sua observação. Quando voltei a olhar para ela, foi um sorriso que eu vi antes que ela desviasse o olhar. Estava se divertindo com a minha atitude.

Eu não estava acreditando. Ela era linda... Cabelos loiros escorridos amarrados como um rabo de cavalo, olhos azuis incrivelmente belos. Quando ela voltou a olhar, eu acenei com a mão, ainda meio tímido, desconfiado, pronto para disfarçar. Para minha surpresa, ela acenou de volta, e mais, me convidou para que me aproximasse dela. Eu fui, claro. De perto, ela era ainda mais bonita, os olhos, a boca... Perfeita, não acreditei que estivesse acontecendo comigo.

– Rui Barbosa

– O quê?

– Rui Barbosa é o meu nome!

– Maria Augusta

– O quê?

– Maria Augusta, o meu nome!

– Eu não acredito. Ou é muita coincidência ou você está brincando comigo. Maria Augusta era o nome da mulher de Rui Barbosa, que foi ministro da Fazenda. Meu pai me registrou com esse nome em homenagem a ele, se é que eu posso ser homenagem a alguém, e ao meu avô, que também tinha esse nome. Minha avó não era Maria Augusta, o nome dela era Paloma.

Ela riu, e um brilho especial nos seus olhos me revelou que ela estava se divertindo comigo.

– É mentirinha mesmo, meu nome não é Maria Augusta. É que eu li recentemente um artigo sobre Rui Barbosa...

Pôs a mão no meu braço e se levantou um pouquinho para olhar um lance lá no treino dos jericos (eu tinha até me esquecido deles), quando o pessoal começou a gritar porque um deles havia perdido a direção se chocado com a cerca. Uma sensação deliciosa percorreu o meu corpo ao toque daquela mãozinha macia na pele do meu braço. Depois, sentou-se novamente, mas ficou por mais alguns minutos com a mão no meu braço. Eu estava adorando.

– Por isso eu sei o nome da mulher dele – ela voltou a falar –, então resolvi brincar contigo por causa do nome. O meu nome é Paloma, isso é coincidência – ela falou olhando pra mim. - Paloma Brien.

Acho que era Brien o sobrenome, pelo menos foi isso que eu entendi.

– O que você acha?

– De quê? – eu perguntei.

– Do nome, ora!

– É tudo lindo. O nome é lindo, o mesmo nome da minha avó, mulher do Rui Barbosa, meu avô (eu ainda não estava acreditando). Mas eu não sei se você está brincando comigo. Você é muito engraçadinha.

– Não sabia que sou engraçadinha, mas eu não estou brincando. Meu nome é Paloma mesmo. Sério. Você já tinha assistido a alguma corrida de jericos?

– Eu não. Nem sabia que isso existia. Eu já vi jericos correndo, mas eram jumentos na beira da estrada no Nordeste. Tem tanto jumento abandonado por lá que estão até causando acidentes.

– Eu sei, eu vi na televisão.

– Eu vi ao vivo, quase atropelei um.

– Eu não estou treinando hoje.

– Treinando pra quê?

– Pra corrida de jericos ora! Eu participo da corrida pela minha fazenda. Treinei ontem, você não viu?

– Vai me enganar agora que você corre naquele troço ali com esse corpinho aí! Você é mesmo brincalhona ou tá me achando com cara de bobo?

– Não estou brincando não, eu corro mesmo. Não acredita que uma mulher possa fazer isso? Vai dizer que é machista?

– Não sou machista, não, muito pelo contrário, mas pelo que vejo você está sempre brincando, e não sei se estou sendo enrolado. Mas ontem eu não estava aqui.  Cheguei hoje, ou melhor, dei uma parada pra almoçar e esse burburinho todo que está rolando aqui por causa da corrida chamou minha atenção e aguçou minha curiosidade. Então, eu vim ver o treino.

– Depois eu vi você ali sozinho e o chamei e o senhor ficou fazendo cara de bobão, de desentendido...

– Fazendo cara de bobão nada, eu não estava acreditando mesmo que era comigo.

– Por quê?

– Eu sei lá... Geralmente as coisas não acontecem assim. Eu pensei que tinha algum amigo seu atrás de mim ou que você estivesse me confundindo com alguém.

– Tá bom, vou fingir que acredito! Vai dizer também que não estava olhando pra mim?

A mulher era danada, cheia de autonomia, estava me deixando enrolado. Obrigou-me a agir da mesma forma.

– É, eu estava olhando, sim. Você é muito bonita, mas estava na minha, Sabe como é, aqui no interior... Vai que o seu marido é ciumento e percebe meu interesse, e eu aqui, sozinho... Sei lá o que pode acontecer...

– Não sou nem casada, seu bobo, ou melhor, sou viúva. Meu marido morreu faz dois anos, assim, de repente, de enfarte. Você não é casado, né? Não usa aliança e não tem cara de quem tira pra não se denunciar... Agora, de perto, eu estou vendo que nem tem marca no dedo.

– Eu sou divorciado, faz mais de sete anos. Sou caminhoneiro, e minha ex-mulher não aceitava que eu ficasse muito tempo fora de casa. Era muito ciumenta, sempre achava que eu andava com mulheres nas minhas viagens. Daí, não deu certo.

– Logo vi que você não é daqui. Primeiro porque nunca tinha lhe visto e também porque é diferente dos homens daqui. Acho que é o jeito, sei lá.

– Eu sou do Rio de Janeiro.

– Do Rio! Uau! Deve ser legal essa sua vida, rodar pelo Brasil inteiro. Eu nunca fui ao Rio, dizem que é muito bonito. O Cristo Redentor, as praias... Ipanema... Sou louca pra conhecer Ipanema. Sou fã número um de Vinicius de Moraes. Tem uma rua lá em Ipanema com o nome dele não é? Ele morava lá. O único problema é a violência. Disso eu tenho medo. É perigoso mesmo?

– Tem muito assalto, contravenção, guerra de gangues dos morros. Tem muito morro lá no Rio, quase todos cheios de favelas. É uma pena! O Rio de Janeiro é muito bonito, e isso afasta os turistas. Eu agora não fico muito lá. Praticamente moro no meu caminhão.

– Eu estou precisando de um parceiro pra corrida de amanhã. O meu irmão não pode correr porque quebrou o braço.Você quer?

– Mas eu nunca dirigi um troço desses!

– Não precisa dirigir, só se for necessário. Vou mostrar pra você que as mulheres também podem ser piloto.

– Tá bom, então, está combinado, parceira!

Nós nem havíamos percebido que os treinos já tinham terminado e que só estávamos nós dois sentados nas arquibancadas.

– Aonde você vai ficar? – ela perguntou.

– Eu fico por aqui mesmo na cidade. Encosto num posto de gasolina e durmo no meu caminhão. Tem uma caminha na boleia.

         – Então leva ele lá pra fazenda, meus pais vão adorar conversar com você. Eles gostam muito de histórias, e você deve ter muita coisa pra contar. Eles, e eu também. Somos descendentes de holandeses. Vieram de Santa Catarina nos anos 60 com os pais deles e se estabeleceram aqui. Mais tarde a gente pode vir aqui na cidade. Vai ter shows com bandas, forró e queima de fogos de artifício.

          – Já que é assim, eu aceito o convite.

Fomos para a casa dela no meu caminhão. Era uma fazenda grande, um casarão enorme. Apresentou-me aos seus pais e perguntou se eu podia dormir lá. Não posso me esquecer da maneira que ela falou:

– Pai, mãe, esse é o Rui Barbosa. Não é aquele, mas podem chamá-lo só de Rui.

Disse brincando que eu era piloto de jericos, o melhor do Rio de Janeiro, que não tinha encontrado vaga no hotel. Eu falei que era brincadeira dela, que nunca tinha visto um jerico antes. A mãe dela se limitou a dizer:

– Essa Paloma! Sempre foi assim, brincalhona, desde menina, não liga não seu Rui!

– É, eu já percebi – eu disse.

Tomei um banho maravilhoso. Jantamos cedo, uma comida deliciosa, que havia muito eu não comia. Conversamos um pouco na varanda, eu, ela, seus pais e o irmão com a esposa. Eles têm duas filhinhas, loirinhas como Paloma. Depois fomos para a cidade assistir à festa, no carro dela, e ficamos lá até quase meia noite. Ela comentou que queria estar descansada no dia seguinte para ganharmos a corrida. É uma pessoa muito agradável, e tinha razão, eu estava todo bobo do lado dela. Já estava me sentindo o dono do pedaço e nem tinha dado um beijo ainda, só olhares, sorrisos, elogios e encostadas de mão. Haja pretextos para isso! Pior que eu estava custando a acreditar que um mulherão daqueles estivesse me dando bola. Ainda estava meio inseguro.

Quando chegamos à fazenda, já tinham preparado um quarto bem aconchegante para mim. Como foi bom dormir naquela casa, livre de preocupações... As roupas limpas, macias e cheirosas. Dormi o sono dos justos naquele ambiente fresquinho e acolhedor.

Acordei com um galo cantando e o sol entrando pela janela. Abri as cortinas de renda e me espreguicei, recebendo o sol morno no peito. “Isso é que é vida! Quando me aposentar, vou comprar pelo menos um sitiozinho num lugar assim, bem afastado, criar umas galinhas e jogar o despertador fora ou então dar pra um morador de rua, para ele sair cedo da porta das lojas” – imaginei.

Tomei um banho. O quarto tinha até suíte. “Essa gente sabe receber os convidados” – pensei.

Não precisei esperar muito, logo ouvi uma batida na porta, que se abriu sem que eu tivesse tempo de me levantar da poltrona próxima à janela para dar passagem à figura radiante da Paloma. Uma visão espetacular. “Como essa mulher consegue ser tão bonita assim, mesmo quando acorda? Ela complementaria muito bem o meu sonho do sítio” – pensei.

– Vai descer pra tomar café ou prefere que eu traga aqui pra você?  – ela perguntou, aproximando-se de mim e, pra minha surpresa, me dando um beijo no rosto. Ainda bem que eu tinha feito a barba. Acho que ela percebeu o meu espanto e perguntou:

– O que foi? Não gostou do meu bom-dia? Dormiu mal?

– Não! Foi uma das melhores noites da minha vida. Acordei muito descansado e satisfeito. É que eu não esperava que você entrasse aqui assim e...

– Então, vamos tomar café. Daqui a pouco a gente vai pra corrida.

Pegou-me pela mão e saiu quase me arrastando para a cozinha, feliz da vida.

Já estava chegando a hora da corrida, a gente foi conversando no próprio jerico. Paloma era muito divertida, simples, simpática.

Foi dada a largada, com muitos jericos correndo na pista circular; em alguns trechos cheios de lama, chegava a espirrar na gente. Teve uma vez em que ela fez uma manobra e eu quase caí do carro. Nós rimos muito e eu me diverti a valer. Depois de muitas voltas e risadas, chegamos em quinto lugar, e ela me deu um beijo nos lábios, para minha surpresa. Voltamos satisfeitos para a fazenda. Ela estava muito feliz. Eu não sei se ela ficava triste em algum momento. Era encantadora. Imagine como eu já estava me sentindo naquela altura.

À noite, depois do jantar, fomos novamente conversar na varanda, e Paloma insistia em ficar com os olhos lindos em frente aos meus; parecia que estava querendo me ler. Eu já estava até constrangido, com medo de que seus pais percebessem. Então eu disse:

– Bem, pessoal, a conversa está muito boa, mas, se vocês permitirem, eu vou dormir, porque eu pretendo ir embora amanhã. Isso aqui está muito bom, vocês são ótimas companhias, sabem receber as pessoas, são muito hospitaleiros, mas eu não posso ficar me aproveitando disso. Tenho que ganhar a vida e a minha vida por enquanto é na estrada. Vou embora pela manhã. Aqui está meu endereço no Rio e o meu telefone. Se precisarem de alguma coisa, estarei sempre pronto a atendê-los.

– Está certo! – disse o pai de Paloma.

– Vou lá ao galinheiro falar pro galo não cantar amanhã de manhã, senão ele vai virar canja – Disse a Paloma.

Eu olhei para ela e sorrindo, desejei boa-noite a todos e fui para o quarto. Troquei a roupa e me deitei, mas não conseguia dormir. Ela não saía da minha cabeça. Aqueles olhos azuis me olhando, o beijo que ela me deu quando acabou a corrida, me pegando pela mão de manhã, beijando o meu rosto quando entrou no quarto... Estava gamado nela. Era uma pena eu ter que ir embora no dia seguinte, mas não tinha jeito. Virava para um lado e para o outro na cama e os meus pensamentos não me deixavam dormir. Passava da meia-noite quando a porta do quarto se abriu devagarzinho. Ela entrou na ponta dos pés, fechou a porta e literalmente se deitou em cima de mim. Estava de baby-doll e eu senti os seios pontudos de encontro ao meu peito e a sua boca procurando a minha. Nem me deu tempo de pronunciar qualquer coisa.

– Vim lhe dar o prêmio pela corrida de hoje e receber o meu, de você. O que mais quero desde que lhe vi ontem. Eu estou apaixonada por você.

– Então somos dois – eu disse.

Não deu outra: amamo-nos como se fosse uma explosão de supernova, por muito tempo. Não sei se foi porque eu estava gostando muito dela, mas é uma mulher maravilhosa, divina, soube me amar e me fez amá-la como nenhuma outra. Nem percebi quando eu dormi. O galo me acordou novamente, e ela ainda estava ali, deitada ao meu lado, com os cabelos dourados espalhados pela cama e com uma das pernas em cima de mim; nua, linda como um anjo. Eu queria que o tempo parasse naquele momento. Foi uma pena ter que acordá-la. Beijamo-nos apaixonados mais uma vez antes de ela se vestir, ou melhor, vestir a calcinha e a camisola e voltar para o quarto dela. Em poucos minutos a família toda iria acordar para um novo dia. Ela soube se aproveitar daquele momento para fazer deixar gravado para sempre na minha memória a bela imagem nua da mais bonita mulher que eu conheci.

Depois do café, me despedi de todos e ela me acompanhou até a entrada da fazenda montada num cavalo e se despediu de mim com um beijo de mais ou menos dez minutos que por pouco não me fez ficar para ver no que dava. Depois ela disse, com os olhos cheios d’água:

– Vai à luta, piloto de jerico!

Abraçou-me como se estivesse pedindo para eu ficar. Eu passei a mão nos cabelos dela, no rosto, nos beijamos de novo. Subi no caminhão e fui embora. Parei um momento com vontade de voltar. “Eu acho que daria um bom motorista de jerico”– pensei. Mas acelerei para só me arrepender quando estivesse bem longe.

Quando parei num posto de gasolina para almoçar, já estava muito distante de Alto Paraíso com uma saudade fresquinha no meu coração. Abri a cortina do compartimento de dormir da boleia e encontrei um bilhete que eu conservo comigo, com a marca da boca da Paloma feita pelos lábios pintados de batom, onde ela escreveu: “Daria tudo pra você ficar aqui comigo. Gostei de você logo que meus olhos lhe viram e me apaixonei quando lhe conheci. Tinha esperança de que você fosse o meu homem. A última noite foi a melhor da minha vida. Agora eu amo você. Se tivesse me convidado para ir consigo, eu estaria aí, ao seu lado, bem mais feliz do que estou aqui, tenho certeza. Você deixou comigo uma parte sua, e eu sei que vai voltar. Vou ficar esperando. Até breve, meu amor. Sua Paloma.

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